Para além das questões inerentes ao próprio debate político-partidário em si, os dois últimos períodos eleitorais ofereceram à sociedade brasileira a possibilidade de incluir no debate político nacional por meio de mídias tradicionais como a televisão uma parcela populacional que, até então, exercia o dever do voto, mas sem conhecer, efetivamente, em quem e sobre o que se votava. Os surdos, que constituem, segundo o último Censo do IBGE, 5,1% da população brasileira, puderam assistir em 2016 e em 2018 às propagandas político-partidárias e aos debates entre os candidatos exibidos na TV aberta por meio da tradução e da interpretação da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Um direito adquirido que deve, sem dúvida, apesar dos problemas de implementação, ser celebrado.
Tanto nas propagandas obrigatórias quanto nos debates, a Libras foi veiculada por meio de um pequeno espaço no canto da tela denominado janela de Libras cujo objetivo é veicular a tradução e/ou a interpretação para surdos em mídias audiovisuais (Nascimento, 2011; 2017; Naves et al., 2016). O acesso dos surdos ao debate político do país no período eleitoral foi possível graças à promulgação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), Nº 13.146/15, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência e que mudou o cenário de instabilidade quanto ao uso das janelas de Libras em produções audiovisuais políticas.
Somado a esse contexto, o acesso de surdos à produção audiovisual também tem sido determinado pela legislação, desde 2016, na esfera cinematográfica. A Agência Nacional do Cinema (ANCINE) emitiu uma Instrução Normativa (I.N. Nº 128/2016) com normas e critérios básicos de acessibilidade visual e auditiva a serem observados nos segmentos de distribuição e exibição cinematográfica de obras cujo financiamento tenha como origem verbas públicas. Dentre as determinações, a I.N. indica que as salas de exibição cinematográfica devem garantir recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva e com deficiência visual, e os responsáveis pela produção devem entregar uma peça para depósito legal na Cinemateca com todos os recursos já inseridos.
O contexto legislativo apontado acima indica a abertura e ampliação de um profícuo campo de trabalho para tradutores e intérpretes de Libras: a tradução audiovisual (TAV). A TAV tem ganhado destaque pela diversidade e ampliação da circulação de discursos e textos em plataformas multimodais que combinam dimensões sonoras, visuais, verbais e gestuais (Remael, 2010; Pérez-González, 2014). A TAV pode ser inter ou intraligual e apresentar-se nas modalidades oral ou escrita e ser, ainda, intersemiótica se considerarmos a modalidade da Audiodescrição (AD) no cenário da Tradução Audiovisual Acessível (TAVa) (Spolidorio, 2017; Franco; Araújo, 2017).
Nos últimos anos, a TAVa, enquanto submodalidade da TAV, tem ganhado projeção graças ao cenário legislativo de inclusão de pessoas com deficiência sensorial nos diferentes campos da cultura e tem demandado profissionais para atuar na translação de textos e discursos de natureza semiótica audiovisual. A tradução e interpretação de língua de sinais compõe o cenário de prática e pesquisa da TAVa porque permite que pessoas surdas usuárias de línguas dessa modalidade participem mais efetivamente da produção e consumo da cultura audiovisual.
Entretanto, embora historicamente a tradução audiovisual da língua de sinais, apresentada indiscriminadamente como “janela de Libras”, tenha sido um dos primeiros espaços de ampla projeção de aparição desses profissionais em programas religiosos na década de 1990, o contexto atual demanda dos tradutores e intérpretes de língua de sinais conhecimentos e habilidades específicas que precisam ser consideradas durante o processo de tradução e/ou interpretação. O primeiro aspecto é a própria operacionalização da atividade tradutória. Os profissionais do campo podem atuar na (i) interpretação audiovisual da língua de sinais, no caso de programas ao vivo como os debates realizados na TV aberta na época das eleições, em telejornais, programas de entrevistas etc.; e/ou (ii) na tradução audiovisual da língua de sinais, realizando tradução de filmes, peças publicitárias, propagandas, vídeos institucionais, dentre outros.
Essa caracterização aponta, a meu ver, para três aspectos: (i) o mercado de trabalho; (ii) a produção de pesquisas; e (iii) a formação de profissionais. No que diz respeito à primeira direção, os tradutores e intérpretes de língua de sinais precisam lidar com diversos aspectos no processo de contratação de seus serviços, a começar pelo desconhecimento que os contratantes têm a respeito da sua atuação. Não são poucos os relatos de colegas que são contratados para traduzir filmes de longa metragem que foram financiados com recursos públicos e recebem como prazo para preparação, estudo e pesquisa do material dias ou, na melhor das hipóteses, apenas uma semana antes da execução da tradução em si.
Diferentemente da tradução de textos escritos, a tradução de língua de sinais demanda competências que são inerentes à própria diferença de modalidade das línguas envolvidas no processo tradutório. Enquanto o tradutor de textos escritos não aparece empiricamente na obra traduzida porque a produção textual está “fora” do seu corpo, a tradução de língua de sinais obrigatoriamente coloca o tradutor em exposição porque o texto em língua de sinais é produzido e articulado pelo próprio corpo do tradutor, o que requer, para além das competências linguística, tradutória e referencial, uma competência de performance corporal-visual (Rodrigues, 2018). Com isso, o processo tradutório, além de englobar etapas comuns a qualquer tradução, exige do profissional um estudo atento a pontos semióticos de natureza verbo-visual da produção a ser traduzida que precisam ser incorporados e, às vezes, sincronizados, durante a tradução para a língua de sinais. Soma-se a isso, também, a importância de o tradutor de língua de sinais estar atento durante a gravação para evitar o espelhamento das imagens durante a tradução. Esse espelhamento pode ser evitado quando o tradutor faz marcações de personagens, por exemplo, nas posições contrárias ao que vê na tela que exibe o vídeo a ser traduzido. É um efeito cognitivo que demanda certo esforço e atenção para evitá-lo. Todo esse processo carece de tempo de preparação prévia e de estudo da produção audiovisual a fim de garantir ao público-alvo uma tradução de qualidade, o que não pode acontecer em apenas um dia antes da gravação da tradução.
Outro impasse é a dificuldade de os produtores compreenderem a importância da revisão da tradução. Como a maioria dos tradutores de língua de sinais não possuem estúdios próprios para gravação da tradução, os contratantes são responsáveis pela locação do setting tradutório (um estúdio com boa iluminação, fundo neutro, câmera, ilha de edição etc.), o que implica custeio de um espaço para a captação da tradução. A revisão, nesse caso, implicaria um gasto a mais para regravação, caso haja necessidade. Por isso, uma das estratégias utilizadas é a revisão in loco pelo tradutor ou pela equipe de tradução. No caso de equipe, o mais recomendável, os revisores assistem ao processo de tradução e sugerem melhorias durante o processo indicando a necessidade de parar a gravação para refazê-la.
O segundo aspecto é a produção de pesquisas que visem descrever os processos de tradução e de interpretação nesses contextos. Os Estudos da Tradução e Interpretação da Língua de Sinais (ETILS) têm se constituído um profícuo campo de convergência interdisciplinar que reúne arcabouços teórico-metodológicos para o estudo da tradução e interpretação intermodal (mobilização de línguas de diferentes modalidades) (Rodrigues e Beer, 2015). Apesar do aumento de pesquisas, a tradução e interpretação audiovisual ainda é um campo não muito explorado, sobretudo no que diz respeito aos procedimentos tradutórios. No Laboratório de Tradução Audiovisual da Língua de Sinais (LATRAVILIS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde atuo, por exemplo, temos produzido estudos que apontam a necessidade de se discutir a janela de Libras não como sinônimo de tradução e de interpretação, mas como locus de circulação dessas atividades (Nascimento e Nogueira, no prelo), sobre a criação desses espaços em função dos gêneros traduzidos e não por uma normativa legal imposta sem cuidado ou análise dessa relação (Nascimento, 2017), além de descrever as atividades de tradução e de interpretação em diferentes gêneros audiovisuais. No estudo atual, que tenho desenvolvido com auxílio regular à pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP — Processo 2017/21970-9), criamos um questionário bilíngue para que os surdos possam avaliar variações das janelas de Libras propostas pela ABNT, pelo Ministério da Cultura e pelo mercado de produções audiovisuais acessíveis. Estudos nessa direção contribuem para o fortalecimento do campo e, sem dúvidas, para o terceiro aspecto: a formação de profissionais para atuar nesses contextos.
Nesse último ponto, há que se pensar que a atuação de profissionais na tradução e/ou interpretação audiovisuais da língua de sinais exige conhecimentos e habilidades procedimentais (de dimensão linguística, discursiva, tradutória, corporal etc.) e também declarativas (compreender a linguagem do audiovisual, termos técnicos de edição, explicação da sua atividade para o público demandante do serviço etc.) que precisam ser trabalhadas nos diferentes espaços formativos.
Em suma, a TAV é um campo promissor para tradutores e intérpretes de Libras, e quem tem a ganhar com tudo isso é a comunidade surda, que poderá participar, de forma efetiva, do consumo da cultura audiovisual no Brasil em sua própria língua.
Marcus Vinícius Batista Nascimento, assinatura Vinícius Nascimento, é Doutor (2016) e Mestre (2011) em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Bacharel em Fonoaudiologia (2009) pela mesma instituição. Professor Adjunto I do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no curso de Bacharelado em Tradução e Interpretação em Libras e Língua Portuguesa. Coordena o Laboratório de Tradução Audiovisual da Língua de Sinais (LATRAVILIS/DPsi/UFSCar), onde desenvolve, atualmente, o projeto de pesquisa “Tradução de Libras em materiais audiovisuais: usabilidade de janelas e sincronia verbo-visual no processo tradutório” com Auxílio Regular à Pesquisa da FAPESP (Processo: 2017/21970-9). Lidera o Grupo de Estudos Discursivos da Língua de Sinais (GEDiLS/UFSCar/CNPq). É Diretor Regional Sudeste da Federação Brasileira das Associações de Tradutores, Intérpretes e Guias-Intérpretes da Língua de Sinais — FEBRAPILS (2015-2019). Tradutor e Intérprete da Língua de Sinais Brasileira (Libras)/Língua Portuguesa com experiência na tradução de textos didáticos, literários e audiovisuais e na interpretação comunitária, educacional, de conferências e midiática. Os temas centrais de ensino, pesquisa e extensão são tradução, interpretação, tradução audiovisual, intermodalidade, Libras, verbo-visualidade e estudos bakhtinianos.
Referências bibliográficas
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