Venho reparando há algum tempo que o tema especialização tem aparecido em conversas e momentos variados, com pessoas diferentes. A palavra e suas derivações (especializar, específico, especializado) saem da boca de parentes que buscam se recolocar no mercado, de colegas de profissão, de amigos que nem passam perto da área de humanas. Isso é sinal de quê?
Refletindo cá com os meus botões, tenho três palpites que, correlacionados, justificam essa recorrência.
- Avanço científico-tecnológico e geração de dados
Apesar do terraplanismo de alguns, nunca antes na história da humanidade se produziram tantos dados em uma velocidade sobre-humana e desumana—afinal, o nosso cérebro simplesmente não consegue absorver e processar tanta coisa ao mesmo tempo.
O avanço científico-tecnológico tem buscado formas de otimizar a análise e o consumo dessa avalanche de dados para que possam ser aproveitados como informações que, sob manipulação humana, produzirão conhecimentos. E, quanto mais conhecimento produzido, mais necessidade de sistematização.
- Mercados mais exigentes — e, por que não, a vida?
Há de se convir que tanta tecnologia torna obsoletas determinadas funções, o que pode ser um baita problema em sociedades que prezam por uma formação meramente técnica de sua população: as pessoas ficam mais descartáveis no mercado de trabalho e são cada vez mais marginalizadas nesse processo.
Por outro lado, em sociedades que prezam por uma formação continuada, plena e abrangente de seus cidadãos, uma função obsoleta abre espaço para atividades inéditas, passíveis de serem exploradas por essas pessoas. Infelizmente, já sabemos onde o Brasil se enquadra nessa história. Consideração feita, seguimos.
Embora a ideia da supremacia robótica venha nos assombrar de vez em quando, o avanço tecnológico libera espaço (físico, mental e emocional) para o ser humano se desenvolver mais naquilo que só ele, em sua humanidade, é capaz de proporcionar.
Na indústria de serviços linguísticos, é inegável que a tecnologia impulsionou a atuação de tradutores e intérpretes, limando tarefas enfadonhas em prol da nossa produtividade. Com ela, ganhamos tempo para dedicar nossa energia a outras atividades (profissionais ou não) que vão compor a nossa oferta de soluções para os clientes.
No final das contas, o diferencial ainda continua sendo o tête-à-tête humano, personalizado, empático… Características que (ainda) não são ensináveis e reproduzíveis por máquinas.
- Autoconhecimento e (re)conexão com o seu “eu”
Este terceiro pilar é o mais importante, por dizer respeito a quem somos fora da arena profissional — embora esbarre diretamente nas atividades que exercemos para ganhar a vida.
Com o mundo em ebulição literal e metafórica, a realidade de cada pessoa pode se tornar um convite para cada um voltar a atenção ao seu próprio umbigo; para se entender e se conhecer melhor, reconhecer limites e quereres.
Todo esse processo tem recebido vários nomes — autoconhecimento, autocuidado, desenvolvimento pessoal, etc. — e tem virado produto de várias iniciativas — como tudo o que o capitalismo toca, não é mesmo? Independentemente dessa discussão, esse mergulho em si mesmo é, de alguma forma, salutar e fundamental para tentarmos sobreviver em um plano material e psíquico menos hostil.
E onde o nicho entra nessa história?
O nicho é o pulo do gato em meio ao caos.
A realidade da humanidade hoje é composta por uma sobrecarga de conteúdo e tecnologias que se complexificam e multiplicam em progressão geométrica, e pessoas igualmente sobrecarregadas por um modo de viver que rejeita o ser em prol do ter/produzir/consumir; e são essas mesmas pessoas, com níveis de capacitação variados, que estão disponíveis para lidar com isso tudo.
Encontrar um caminho em meio a essa rede embolada é buscar alívio nessa confusão, ciente de que outras pessoas estão procurando por gente que possa proporcionar esse mesmo alívio para elas ao resolver seus problemas de forma pontual, personalizada e empática.
Indo além, acredito que o nicho seja a solução de longo prazo para um profissional obter reconhecimento (de pares e de leigos), retorno financeiro sustentável e perspectiva de crescimento na carreira.
Em outras palavras, quanto mais eu me especializar e estreitar a minha área de atuação, mais versada nesse nicho ficarei, mais autoridade terei nele e, consequentemente, me tornarei referência para quem precisa resolver o problema no qual sou especialista. Nesse patamar, terei um poder de barganha maior para estipular o valor do meu tempo que será dedicado à resolução do problema.
Cuidado para não virar o especialista estapafúrdio
Parafraseando a minha avó:
Hoje em dia, os médicos são tão, mas tão especializados, que se você torce o pé direito e vai a um ortopedista, corre o risco de ele dizer: “Desculpe, minha senhora, mas eu sou especialista em pé esquerdo”.
Pois é, há limites.
Fechar-se em um nicho não é recomendável simplesmente porque a vida é mudança. As demandas mudam, os mercados se transformam, vai que aquele seu nicho de estimação venha a ser extinto, sabe-se lá como e por quê?
“Decida-se, Carol: é para ser ‘nichado’ ou não?”
Depende do momento de vida de cada um. Por aqui, faço assim: sei exatamente quais são os meus nichos de atuação e a maior parte da minha energia é dedicada a eles. Porém, não negligencio o restante do meu mercado, e fico brincando nesse fluxo de dar zoom-in e zoom-out nas oportunidades de atuação. Há dez anos sigo assim, dançando conforme a música.
Cansa? Demais. Mas tem valido muito a pena.
Carolina Walliter é tradutora e intérprete de conferências com dez anos de experiência em marketing e transcriação, seus nichos preferidos no mercado de serviços linguísticos.