O ano de 2020 foi invariavelmente marcante para todo o mundo. A globalização, fenômeno que oferece tantos benefícios, mostrou-se capaz de disseminar também o caos na forma de uma partícula praticamente invisível — não há como negar a contribuição da alta circulação de pessoas entre os diferentes países do globo para o alcance e a velocidade de transmissão do coronavírus, responsável por uma pandemia que se espalhou com rapidez sem precedentes.
Esse acontecimento de grande monta veio a “melar” o megaevento já previsto para minha vida naquele ano: o nascimento do meu primeiro filho. Depois de muitos anos casados, ao longo dos quais nunca havíamos pensado em assumir a parentalidade, eu e meu marido surpreendemos um total de todas as pessoas que nos conhecem ao anunciar que, não somente havíamos decidido ter um filho, como ele já estava encomendado.
A quarentena chegou ao Brasil em março, e Daniel, em abril.
Eu tenho um “privilégio” que é negado a muitos na área de tradução: um emprego CLT com remuneração justa. Sou registrada em meio período e, no restante do tempo, assumo projetos freelance junto a clientes finais e agências. Com licença-maternidade garantida, poderia pausar os projetos freelance para me dedicar ao bebê. Devido à pandemia, sabia que não poderia contar com aquela ajudinha de mãe, sogra, amigas, cunhadas, irmãs e vizinhas que costumam rodear um novo nascimento — até que se tornou inviável e precisei abrir exceções para conseguir dar conta do recado.
Gostaria de enfatizar mais um lugar de privilégio de onde falo: costumo brincar que meu marido é ganhador do prêmio Rodrigo Hilbert na categoria “Não faz mais que a obrigação” — absolutamente participativo e presente, assume todas as obrigações e responsabilidades, divide as tarefas domésticas e os cuidados do bebê. Ou seja, faz tudo que toda mulher faz sem ganhar parabéns. Infelizmente, homens assim ainda não são lugar-comum e aprecio o quanto ele se destaca nesse quesito. Parabéns para mim, que escolhi tão bem, e à mãe dele, que criou essa joia rara.
Com a ajuda da minha mãe e, na “baixa da pandemia”, de uma babá, fui retomando os freelas gradualmente. Não há como tocar o mesmo volume de projetos de antes. Amamentando o Daniel no peito até hoje, com pouco mais de 1 ano, ainda faço longas pausas durante o dia. Amamentar é um full-time job. Precisamos lutar para que isso seja reconhecido juridicamente. Anotem na agenda.
Com isso, vem o medo de cair no esquecimento. Aquela regrinha tácita: depois de três “nãos”, o cliente passa para outra. Demoramos anos para construir uma reputação sólida e associar nosso nome a qualidade; a mesma reputação se esvai após as primeiras negativas e alguns projetos menos esplendorosos — quem é mãe sabe, quem não é, não tem como imaginar: nosso cérebro derrete após o nascimento da criança. Dizem que volta ao normal depois de um tempo. Aguardo ansiosa.
A maternidade é um momento singular na vida de uma mulher e acarreta grandes mudanças, tanto em termos de hábitos, dinâmicas e afetos, como profissionais, relacionais e, principalmente, identitários. Aprender a conviver com uma nova versão de si, menos autocentrada e mais desamparada frente às vicissitudes, vem sendo doloroso.
Atualmente, é difícil separar identidade e profissão. Somos o quê, e quanto, produzimos. Nossa carreira é prioridade. Daniel nasceu e ocupou esse lugar, sem que eu estivesse devidamente preparada. Conclusão: passei a me cobrar com base nos meus parâmetros pré-maternidade. Sempre que Daniel exige cuidados, o trabalho fica em segundo plano e a ansiedade passa a gritar dentro de mim, me lembrando de prazos, QAs, e-mails não respondidos. É uma transição sofrida.
Tudo isso me leva a uma conclusão bastante inexorável: são problemas causados pela alta carga mental imposta sobre as mulheres atuais, em menor ou maior grau, que não desejam escolher entre a carreira profissional e a vida familiar. Infelizmente, ainda há um longo caminho a percorrer até as mulheres encontrarem amparo e poderem se realizar nesses dois âmbitos concomitantemente. Exigir que a gente escolha entre eles é cruel, assim como é cruel avaliar nosso desempenho em um [âmbito] como se o outro não existisse.
Fico me perguntando como seria a parentalidade se os homens fossem igualmente responsáveis pela criação dos filhos, trazendo consigo mudanças sensíveis no regime de trabalho para ambos os gêneros. Alguém já parou para pensar que, atualmente, atingimos o auge da vida profissional ao mesmo tempo em que costumam vir os filhos, e que é impossível tocar duas prioridades dessa magnitude simultaneamente? Como dinheiro é a mola propulsora do mundo e procriamos porque sim, buscamos o auge profissional para dar conforto financeiro aos filhos, sem dar a devida atenção às necessidades que vão muito além do dinheiro. Tento entender o valor que se dá à mãe, ao cuidado e às críticas enfrentadas pelas mulheres que resolvem se dedicar “apenas” à maternidade.
Não sei de fato aonde quero chegar com essas reflexões. Talvez queira apenas compartilhar minha história, tão complexa, difícil e mundana quanto qualquer outra. Permeada por culpas, arrependimentos, machismos, feminismos e feminilidades, carregada de sentimentos de incapacidade e incompetência, de julgamentos próprios construídos a partir de romantizações ideais que fazemos do que achamos que outras pessoas vivem, sem conhecer o caminho delas. We can only walk in our own shoes.
Percebo agora que, em algum momento desta reflexão, abandonei a pandemia. A maternidade é complexa o suficiente sem máscara e álcool em gel. Como teria sido minha experiência sem confinamento, com possibilidade de creche, rede de apoio estendida e terapia? Nunca saberei. Tenho a impressão de que as dores e angústias seriam as mesmas, mas com outros braços para ajudar a acalentar Daniel nos dias mais difíceis. E sem o medo de adoecer a cada saída de casa, de perder alguém querido e do bombardeio diário de números, variantes e atrasos na vacina.
Maternidade, carreira, pandemia: cada um desses tópicos tem fôlego para ser o tema central de toda uma vida. Mas aconteceram juntos. As tarefas, obrigações e preocupações é que são felizes: ao contrário da gente, podem se aglomerar sem restrições.
Sobre a autora
Olivia Cappi é tradutora de inglês – português – espanhol com 10 anos de experiência em diversas áreas, especialmente marketing e publicidade, turismo, ciências humanas e tecnologia. Graduada em História pela Unicamp, tem mestrado em História Cultural pela mesma universidade e mestrado em Linguística Aplicada pela University of Queensland (Austrália). Atualmente focada em transcriação, revisão e controle de qualidade para grandes multinacionais de tecnologia, traduções/versões acadêmicas e em ser mãe do Daniel em tempo integral, 24h por dia, 7 dias por semana.
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Julia
Arrasou!
Tay
Parabéns!!! Excelente texto com tantas reflexões importantes que precisam ter mais visibilidade e serem discutidas. Desejo muito sucesso em todas as áreas da sua vida!
Simone
Olívia é incrivelmente maravilhosa e talentosa em tudo o que faz!!! Parabéns pelo lindo texto que fala tão profundamente a realidade de muitas mulheres!
Amei!!!