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O revisor da dublagem: um escudeiro fiel do tradutor

Costumo dizer que a dublagem é “artesanal”. Meu interesse por essa área surgiu em meados de 2002, quando fiz o primeiro curso de tradução para dublagem e legendagem — fiquei encantada —, porém, só fui mergulhar a fundo nesse universo, novamente, quando passei a revisar, em tempo integral, as traduções para dublagem, que são o tema que abordarei aqui.

O estúdio para o qual trabalho conta com muitos revisores em sua equipe, contudo, essa não é bem a realidade da maioria das casas. Muitas vezes, o texto vai praticamente direto para as mãos do diretor e, caso a tradução não esteja tinindo, os possíveis erros e atrocidades vão ser consumidos pelo telespectador.

Uma vez, lembro-me de ter assistido a um filme dublado em que a menina abre um pacote e dentro há uma pelúcia daquela gatinha famosa, e a menina empolgada diz: “Olá, Kitty!”. É claro que nem o tradutor, tampouco o revisor, detêm conhecimento de tudo que existe no mundo, mas uma situação dessas pode pôr em jogo todo um texto que, até então, estava magnífico.

Para não cair em armadilhas, segue o maior conselho para um revisor de dublagem: desconfie de tudo! Claro que, se o trabalho de um tradutor específico nos obriga a desconfiar até dos ands e buts, talvez não valha mais a pena enviar trabalho para este profissional. Mas o desconfiar de tudo é no sentido de ter ouvido e cérebro aguçados. Quando eu reviso uma tradução de dublagem, a leitura em minha mente tem vozes, e não é a minha voz, é a voz da Sandra Bullock dublada ou do Arnold Schwarzenegger. Parece bobagem, mas ajuda muito. Penso numa voz de um filme dublado de sessão da tarde que é bem conhecida na minha cabeça e leio o texto todo aplicando aquele ritmo de filme dublado ao longo da leitura. A dublagem precisa soar natural, precisa fazer parecer que aqueles atores são brasileiros e seu cérebro não pode ficar com aquela sensação de “quê?!”. A revisão de uma dublagem é assim, você deve pausar o vídeo sempre que seu cérebro soltar o “quê?!”, ou seja, sempre que alguma coisa soar estranha.

A maioria de nós, tradutores, acredito eu, já discute e trava batalhas internas, mentalmente, a cada tradução literal ou erro que identifica em uma legenda, ou dublagem, e muitas vezes guarda dentro do peito esse sentimento de incômodo. Afinal, imaginem como seria se eu comentasse cada vírgula com meu marido? Coitado! Quando estamos sentados no sofá, tento relaxar e relevar, como faz um bom telespectador que não está atento aos mínimos detalhes linguísticos de uma obra. Mas quando sentamos à frente do computador com o vídeo original aberto na metade da tela e a tradução na outra metade, aí, sim, é hora de nos ater a todos os elementos. Tradução literal; falta de conversão das medidas (pés, polegadas, milhas etc.); erros de tradução, tudo isso somado a mais uma coisinha que chamamos de “sincro”.

No processo todo, o diretor é quem dá a palavra final enquanto está no estúdio, é ele quem vai mudar muitas das nossas escolhas (tanto as do tradutor, como as do revisor), mas, mesmo assim, sempre prefiro fazer uma revisão redondinha e me atentar ao máximo ao sincro. Se o original disser dog com um belo zoom enquanto o ator “bate boca”, sou quase obrigada a deixar cão, em vez de cachorro. Vai encaixar bem melhor. Obviamente devemos sempre estar atentos ao contexto, SEMPRE, pois, dependendo do personagem que emite a fala, tudo pode mudar. É adolescente? É humilde? É requintado? É uma cena passada nos anos 1920? E esses fatores precisam sempre ser levados em conta, como já bem sabemos.

Uma técnica bem interessante que aprendi, recentemente, e que me ajuda muito, tanto na tradução como na revisão da dublagem, chama-se “karaokê do original”. Uma amiga minha, que é atriz, fez o curso de dublagem do Herbert Richers há pouco tempo e me ensinou essa técnica que consiste em seguir o ritmo do original, como fazemos ao cantar uma música. Não basta ter o mesmo número de palavras, não é essa a ideia. Não é transpor palavra por palavra, mas transpor o ritmo. Pense numa batida, numa estrofe musical. Por exemplo, a canção “Tempos Modernos”, de Lulu Santos, que diz:

 

Hoje o tempo voooouamor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentiiiiiir
E não há-tem-po-que-vol teamor
Vamos viver tudo o que há pra viveeer
Vamos nos permitiiiiir

 

Nesse trecho, marquei as ênfases em determinada palavra e as junções de algumas sílabas. A dublagem precisa seguir a mesma coisa, precisa seguir o ritmo do original, porém, sem perder a naturalidade do idioma de chegada. Ou seja, não adianta seguir o ritmo da frase em detrimento da fluência natural do idioma; assim, não podemos deixar algo do tipo “Ela ao mercado não foi!”, só para seguir o sincro, por exemplo, pois não falamos assim em uma conversa informal, a não ser que sejamos o Mestre Yoda.

O revisor de tradução para dublagem precisa estar com o alerta ligado o tempo todo, uma vez que o tradutor pode deixar passar despercebidos erros simples, por já estar muito mergulhado no texto. São detalhes que nem chegam a ser erros, mas podem comprometer a localização no resultado final do trabalho. Um exemplo é o termo funeral, do inglês, que é idêntico no português. Muitas vezes já revisei textos em que o tradutor coloca no automático: I went to her funeral = Fui ao funeral dela. Mas, se pararmos para pensar, falamos “funeral” na vida real? Cabe ao revisor sempre se colocar em uma situação igual à do original. Criar diálogos mentais com aquele contexto esclarece, rapidamente, se tal termo é apropriado, ou não. “Pessoal, não vou ao aniversário hoje, pois será o enterro do pai de um amigo meu.” Alguém fala “funeral”? “Será o funeral do pai de um amigo meu”. Não! E isso é localização, é trazer para a nossa realidade, para a forma como falamos realmente no dia a dia.

Portanto, para fazer uma excelente revisão, além de todos os aspectos gramaticais, concordâncias etc., o profissional precisa estar atento à vida que existe naquele trabalho. Não é uma tradução técnica cheia de repetições e termos específicos, é algo vivo, é língua viva sendo recriada em outro idioma. Além disso, como sempre diz a grande professora Valderez Carneiro da Silva: “Não existe cultura inútil para o tradutor!”. Sempre segui esse conselho e, por mais que fira a minha alma e meus ouvidos, ouço secretamente as músicas da Anitta, Ludmilla e Maiara e Maraisa, a título de pesquisa. Assisto aos vídeos do Whindersson Nunes e acompanho o que a Bruna Marquezine fez no Carnaval do Rio. Acredite: não existe cultura inútil para o tradutor. Uma hora, lá na frente, sua mente vai precisar dessa informação, e você vai se dar conta e se agradecer por ter dado atenção àquilo, ainda que pifiamente.

O tradutor cria toda a trama no tecido de uma tradução para dublagem com infinitas pesquisas e escolhas, mas cabe ao revisor aparar as arestas, fazer o acabamento com cores mais vivas e embrulhar para presente esse “artesanato” que é a tradução para dublagem.

 

Sobre a autora

 

Ana Paula Unheizer é formada em Letras — Tradução e Interpretação pela Unibero e pós-graduada em Teoria e Prática da Tradução pelo Mackenzie. Amante da tradução desde a adolescência, quando traduzia sozinha músicas em inglês com seu Collins verdinho de bolso, hoje atua como tradutora e revisora de dublagem, após vários anos traduzindo patentes de invenção.

 

 

 

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