Republicação da entrevista da Alexandra de Vries com Andrew Clifford para o número 2 da revista Metáfrase, de dezembro de 2016.
Para quem não é da área de interpretação, a profissão de intérprete parece quase impossível, algo mágico. O intérprete escuta e fala quase ao mesmo tempo, duas tarefas que são quase impossíveis, mas também precisa entender o conteúdo e reproduzi-lo em outro idioma de forma correta, idiomática, interessante e, ainda, em um piscar de olhos!
Hoje em dia há cada vez mais cursos que preparam intérpretes para o mercado de trabalho. Apesar da aparente magia que produzimos “na cabina”, há técnicas e práticas comprovadas para capacitar o profissional. Além de cursos profissionalizantes, há também a possibilidade de obter uma formação acadêmica. No nosso mundo globalizado, os estudantes de interpretação podem ir muito além dos cursos presenciais e optar por cursos à distância, mesmo no exterior. Uma dessas opções é o Mestrado de Interpretação de Conferência na Escola de Glendon, Universidade de York, em Toronto, Canadá. Nesta matéria, conversamos com o coordenador do curso e duas alunas que se formaram nesse mestrado recentemente. O campus de Glendon, na Universidade de York, foi fundado em 1966 e é completamente bilíngue, onde o francês e o inglês, os dois idiomas do Canadá, são igualmente representados.
Além dos cursos que preparam os alunos para o serviço público no Canadá e para outras áreas em que o domínio do inglês e do francês é fundamental, o campus já oferecia um mestrado de tradução. O mestrado de interpretação foi fundado em 2011. Andrew Clifford, coordenador do Mestrado de Interpretação de Conferências, foi contratado como professor no Curso de Tradução em 2008, quando a universidade já contemplava a possibilidade de criar um mestrado de interpretação. A experiência de Clifford como intérprete profissional foi instrumental nessa jornada. Em 2009, Andrew conseguiu financiamento do governo canadense para montar um mestrado de interpretação. A princípio, o governo federal apoiou apenas disciplinas em inglês e francês, as duas línguas oficiais do país. Porém, em 2011, Andrew conseguiu financiamento do governo da província de Ontário para estabelecer cursos em outros idiomas. Os primeiros alunos ingressaram no mestrado em setembro de 2012. Atualmente, o mestrado pode acomodar alunos nos idiomas inglês, francês, mandarim, espanhol, português, árabe, russo e alemão.
O que diferencia o MCI de outros mestrados?
Andrew: Para mim, o MCI da Glendon tem três características principais que o diferenciam de outros cursos. A primeira é que o ano inicial do curso é completamente online, com aulas ao vivo via videoconferência. Isto nos dá a liberdade de recrutar alunos e instrutores de qualquer lugar do mundo, além de dar aos nossos alunos o benefício de se familiarizar (e trabalhar confortavelmente) com plataformas online e interpretação remota. A segunda é que os alunos do nosso primeiro ano têm sua carga horária dividida em componentes de interpretação médica, jurídica e de conferências, o que dá a eles um panorama enorme das diferentes vertentes da interpretação em múltiplas configurações de trabalho. Eles saem do primeiro ano do programa com um conjunto de habilidades sem paralelo. E por último, nosso programa prepara os alunos para uma vasta gama de mercados de interpretação. Temos instrutores que trabalham como intérpretes para o governo do Canadá, ONU, Comissão Europeia, Parlamento Europeu, Organização dos Estados Americanos, Corte Criminal Internacional e outras instituições, o que permite a nossos mestrandos se exporem às realidades da interpretação em todas estas organizações. Mas talvez o aspecto mais importante do curso seja que nossos professores são profissionais extremamente dedicados, que realmente vão além para formar nossos alunos. A interpretação é muito difícil e pode inclusive ser um baque para o ego de muitos, mas nunca nos esquecemos de que estamos trabalhando com seres humanos que têm sentimentos, esperanças e aspirações.
Que conselho você daria aos futuros intérpretes?
Andrew: Treinar para se tornar um intérprete de conferências é como treinar para se tornar um atleta olímpico. O que se busca é exibir um desempenho fantástico, mesmo em um dia difícil, e a única forma de atingir este nível de preparação é com horas e horas de prática informada e deliberada.
A Érika Lessa, intérprete brasileira, foi uma das primeiras alunas de português do curso. Intérprete experiente no mercado brasileiro, a Érika nos conta por que optou por fazer um mestrado, e ainda mais no exterior.
Por que você, uma intérprete profissional já estabelecida no mercado, decidiu cursar um mestrado? O que agrega no seu currículo?
Érika: Desde muito nova eu sabia que queria um mestrado, mesmo antes de escolher qual curso fazer na faculdade. Quando concluí a licenciatura em Letras, depois de sete anos de magistério, decidi me tornar intérprete, o que já era coisa demais para administrar. Adiei meus planos. Alguns anos depois, a vontade de estudar algo de forma mais intensa voltou a bater à minha porta. Como não há mestrados em interpretação de conferência no Brasil, eu teria que adaptar algum na área de linguística. Vivia dizendo a mim mesma que ia fazer, mas não me mexia muito. No fundo sabia que não daria conta de fazer um mestrado em algo pelo qual eu não fosse completamente apaixonada. E não deu outra: foi um desafio enorme. Muitas vezes duvidei da minha capacidade. Persisti. Treinei. Assisti aulas de línguas que nem falo. Superei medos e frustrações. Tive professores fantásticos. Assim, desenvolvi habilidades que hoje me permitem oferecer aos meus clientes um trabalho muito mais completo, de qualidade.
E por que um mestrado no Canadá?
Erika: Foi o Canadá que me escolheu, já que não são muitas as opções de mestrado em interpretação de conferência na minha combinação linguística: português A, inglês B e espanhol C. E que bom que me escolheu! É um país fantástico de pessoas fantásticas.
O que foi o mais legal do curso e o que foi o mais difícil?
Érika: Fiz parte da primeira turma do programa e sabia que essa decisão viria acompanhada de alguns ajustes ao longo do percurso. Aliás, um curso (e um profissional) que se preze está sempre se reavaliando e melhorando. Mas o programa teve muitas coisas inesquecíveis. Destaco a possibilidade de ter aulas com profissionais que, além de excelentes intérpretes, são instrutores de renome internacional. Outro ponto maravilhoso foram as visitas às instituições internacionais empregadoras de intérpretes. Poder interpretar naquelas cabines, ser ouvida e receber comentários dos intérpretes da Organização dos Estados Americanos e Parlamento Europeu e Comissão Europeia foram ricas experiências que guardo com muito carinho. O mais difícil é treinar, estudar e persistir quando você tem a sensação de que nunca vai conseguir ser bom o suficiente. A interpretação tem esse poder. Ela arranca você da sua zona de conforto. Técnica de interpretação, todo mundo é capaz de aprender. Superar os limites psicológicos é complexo porque envolve todas as suas experiências de vida, a forma como você se vê, id, ego e superego… um prato cheio para os terapeutas.
Qual conselho você daria para quem está pensando em fazer um mestrado?
Érika: Tenho um conselho para quem quiser ser intérprete, seja no mestrado ou não. Persista. Não espere acordar um dia, depois de 200 horas de aula, e se sentir possuído pela força divina da interpretação. Não é assim que acontece. Precisa treinar, errar, voltar, refazer. É um processo.
Por último, conversamos com Fannie St-Pierre-Tanguay, canadense que cresceu na província francófona de Quebec. Depois de concluir o mestrado, Fannie foi contratada como intérprete parlamentar na Assembleia Legislativa da Província de Ontário.
Como é crescer em um país bilíngue?
Fannie: Para falar a verdade, não foi muito diferente de crescer num país monolíngue. Eu venho de Quebec, a província francófona do Canadá. Meus pais só falam francês, e eu cresci em uma comunidade que falava exclusivamente francês também. Minha formação escolar foi em francês, e o inglês ensinado na escola era extremamente básico. Só me tornei fluente em inglês quando já estava na universidade. As instituições canadenses são bilíngues, mas as pessoas não necessariamente são fluentes em ambos os idiomas — e é por isso que precisamos de intérpretes!
Com tantos cursos no mercado, por que você decidiu fazer um mestrado e por que escolheu o MCI?
Fannie: Meu interesse era especificamente em estudar interpretação de conferências, e a maioria dos cursos na área só cobrem interpretação comunitária (médica e jurídica). Meu objetivo era participar de um programa que um dia pudesse me levar a trabalhar como intérprete de conferências em um órgão internacional, e queria estudar no nível mais alto possível para alcançá-lo. Outro fator importante é que o MCI da Glendon é um programa relativamente novo, portanto, com o potencial para ser o que nós quisermos que ele seja! Como parte da primeira turma do curso, tive a chance de ajudar a moldar o programa, e adoro me envolver a fundo com tudo o que faço.
Você hoje atua como intérprete na Assembleia Legislativa. Pode nos contar um pouco sobre o seu trabalho?
Fannie: A Legislatura Provincial de Toronto se reúne de segunda a quinta-feira, e as diárias costumam ser extensas. Nossa equipe provê interpretação simultânea das discussões no Plenário e de algumas das reuniões das comissões parlamentares. A interpretação também é disponibilizada ao vivo no canal parlamentar local (o Parliamentary TV Channel) e via webcast. Todos interpretamos nas duas direções, embora algo em torno de 95% do nosso trabalho seja do inglês para o francês. Trabalhamos em duas equipes (de três intérpretes cada) que se alternam semanalmente entre a cabine do Plenário e a da Sala das Comissões. Quando trabalhamos no Plenário, interpretamos tanto as discussões regulares de projetos de lei quanto outros eventos mais complexos, como os Períodos de Questionamento, Declarações Parlamentares, Moções, Petições, Declarações Ministeriais etc. Nos Comitês, podemos acabar interpretando consultas públicas, análises cláusula-por-cláusula de projetos de lei, estimativas fornecidas por ministérios e similares. Às vezes também precisamos viajar, ainda que dentro da província de Ontário, quando os comitês vão a outros locais para realizar consultas públicas. Eu particularmente gosto bastante dessas viagens a trabalho.
Se você pudesse dar algum conselho para quem está pensando em fazer um mestrado em interpretação, o que diria?
Fannie: Fazer um mestrado em interpretação é um projeto extremamente intenso. É necessário estar disposta(o) a dedicar seu tempo e esforço completamente ao estudo da interpretação. E eu diria que vai além: interpretação é uma escolha de vida. Você precisa ser intelectualmente curioso, estar disposto a aprender, e ter sempre em mente que o Mestrado é só o início da sua curva de aprendizado. Se você quer ser intérprete, comporte-se como um(a). Leia os jornais, seja curioso(a), tenha disciplina, mantenha um estilo de vida saudável. São coisas que certamente ajudarão em seu progresso quando iniciar seus estudos de interpretação.
Saiba mais sobre o Mestrado em Interpretação de Conferência na Glendon.
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