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O que aprendi com Su Alteza, el Intérprete

Quando recebi a primeira edição de Sua Majestade, o Intérprete (Parábola, 2007), eu não conhecia o autor, Ewandro Magalhães. Também não sabia que era uma obra cheia de aventuras, muito menos que eu mesmo viveria uma ao tornar-me o tradutor do volume para o espanhol. Sou natural de Santiago de Compostela, na Galícia, Espanha, onde morei até terminar a faculdade de Jornalismo e uma pós-graduação, logo após o que resolvi mudar-me para o Brasil.

Morava há dois anos em São Paulo, onde havia me tornado colaborador do caderno Empregos e Negócios, da Folha de São Paulo, para o qual escrevia resenhas de livros. A editora havia encaminhado Sua Majestade para a redação como sugestão de pauta sobre carreira. O subtítulo chamou minha atenção: “O fascinante mundo da tradução simultânea”, pois eu já fazia alguns “frilas” como tradutor.

Conheço profissionais que surtariam só de ouvir alguém misturar os termos “tradutor” e “intérprete.” Por isso, o próprio autor pedia para não ser crucificado. Depois, redefinia os conceitos e reapresentava a profissão pelo seu nome correto: “interpretação simultânea”. A leitura levou-me a procurar o intérprete-escritor nas redes sociais e começamos a conversar. Esses diálogos intensificaram-se quando eu me tornei tradutor de espanhol do jornal El País, na época do impeachment presidencial no Brasil, lá em 2016.

Nossa aproximação não me estranhou, pois Ewandro havia começado sua carreira como intérprete na Câmara dos Deputados, em Brasília, e a maioria das minhas versões eram de reportagens sobre política, ou de colunas de Eliane Brum — cheias de referências a temas políticos, sociais e culturais. Naquela altura do campeonato, era eu quem morava em Brasília. Ewandro estava em Genebra, trabalhando para a União Internacional de Comunicações (UIT), a mais antiga agência da ONU, especializada em tecnologias de informação e comunicação. Ele comentava comigo os textos do El País, e eu acrescentava minhas vivências na capital: clima político, movimentos sociais e vida cotidiana. 

De tanto falar de textos em espanhol, eu tive a ideia de sugerir a Ewandro que Sua Majestade poderia fazer sucesso entre os leitores de fala hispana. E era claro que eu adoraria ser o tradutor! A ideia foi bem recebida, mas não se materializou imediatamente, devido a mudanças importantes na vida de ambos. Eu encerrei minha estada de 11 anos no Brasil em 2016. Retornei a Santiago de Compostela, arrastado de volta pelas saudades de casa e da família. No final daquele mesmo ano, Ewandro saiu do sistema da ONU e mudou-se para Nova Iorque. Em janeiro de 2017, tornou-se cofundador e vice-presidente de Comunicação da Kudo, uma startup de interpretação remota.

Assim, o trabalho de versão da sua obra começou mesmo somente em maio de 2019. Não envolveu apenas textos, mas colaborações com pessoas diversas, cada uma com seu jeito. A primeira delas foi o próprio Ewandro, com quem consegui compreender por que dizem que o tradutor é o leitor mais próximo do autor. Como jornalista, eu não me limitei a traduzir Sua Majestade. Comentava com o autor sobre algumas possíveis atualizações — por exemplo, que ele incluísse alguns dos avanços mais recentes na interpretação remota.

Como intérprete e tradutor na ativa, Ewandro também não se limitou a receber meus textos, e foi perguntando a respeito de nuances como o tom de voz e as minhas opções de vocabulário. Fizemos várias adaptações culturais a quatro mãos. A primeira, no próprio título: “Sua Majestade” virou “Su Alteza”. Ewandro aproveitou para reescrever a terceira edição em português. Lançada em julho de 2020 — um mês antes da versão em espanhol, ambas publicadas de forma independente e vendidas pela Amazon —, ela inclui um capítulo dedicado a revisar os treze anos que se passaram desde a primeira edição, além de modificações em vários capítulos.

A versão em espanhol apresenta quase o mesmo conteúdo, pois eu fui traduzindo também as modificações feitas por Ewandro ao longo do processo. A principal diferença dela é o acréscimo de um prefácio de minha autoria, intitulado “El concabino Magallanes”, que começa assim:

“Eu já traduzi outros livros ao espanhol, mas nunca tive a sensação de dizer minhas palavras no ouvido do leitor, como se eu fosse um intérprete. É o que acontece quando você faz uma versão de um autor como Ewandro Magalhães. Você acaba entrando na sua pele e colocando os fones de ouvido, microfone e tudo mais. Quando você vai perceber, já foi conquistado. Você é o concabino de Sua Majestade.”

Isto é, eu me senti “concabino”, termo que brinca com o concubinato para se referir ao colega de cabine de interpretação com quem se compartilha o trabalho — já que a modalidade simultânea costuma ser feita em duplas. Em março de 2020, durante o confinamento, eu comecei a trabalhar para a agência Certified Interpreting Services (CIS), dos Estados Unidos. Falei sobre a tradução do livro com a CEO, Yazmin Lope, que perguntou se eu já tinha revisor. Respondi que ainda não. Ela ofereceu os serviços do escritor mexicano Rafael Lope, diretor criativo da CIS.

Embora eu estivesse acostumado a ter meus textos editados e revisados, no começo hesitei. Argumentei que, de fato, talvez nem fosse necessário, pois eu mesmo já havia revisado a tradução várias vezes, em colaboração com o autor. Mas, no final, aceitei. Sábia decisão, conforme comprovaria depois. Rafael fez cinco leituras da minha versão. Em cada uma delas, observou diferentes aspectos do texto. Ele me ajudou a adaptar o meu sotaque espanhol a uma sonoridade mais aberta à América Latina. Também apontou expressões que poderiam ser ofensivas em outras culturas — por exemplo, o uso da palavra “culo,” que é usada com normalidade na Espanha, mas soa muito mal no México, de forma semelhante à que acontece com “cú” em Portugal em contraste com seu uso no Brasil.

Sua Alteza me exigiu aprender a ouvir outras opiniões, embora, num primeiro momento, eu achasse que as minhas decisões como tradutor fossem as corretas. Yazmin estava certa ao sugerir um revisor de uma cultura hispana diferente da minha, pois essa diversidade nos permitiu ter uma perspectiva mais ampla. Afinal de contas, se até o próprio autor demonstrou estar aberto a modificar sua obra conforme avançavam as conversas, por que eu não faria o mesmo?

 

Sobre o autor

Óscar Curros é jornalista e tradutor, nascido em Santiago de Compostela, na Espanha. Hoje, ele é diretor de Idiomas da agência de tradução e interpretação Certified Interpreting Services (CIS), em West Hollywood, nos Estados Unidos. Óscar morou por 11 anos no Brasil, período em que foi jornalista da Folha de São Paulo e tradutor do jornal espanhol El País. É graduado em Jornalismo pela Universidade de Santiago de Compostela. Possui especialização em Gestão Estratégica da Comunicação Organizacional e das Relações Públicas pela Universidade de São Paulo e especialização em Educação em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília.

 

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