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Debatendo(-se)

 

Setembro de 2020. O telefone toca. Somos convocados para uma missão a ser desempenhada em rede nacional: a interpretação simultânea dos debates presidenciais dos Estados Unidos.

Engana-se quem acha que o frio na barriga e o coração acelerado surgem só quando o cronômetro aponta 10 minutos para entrar no ar (ou que só intérpretes menos experientes se sentem assim). Logo após aceitar um trabalho de tão alto nível e com tamanha exposição, o nervosismo já manda seus sinais. Para quem tem a curiosidade de saber qual o próximo passo após aceitar um trabalho desse tipo, aqui vai a resposta: preparação! 

Um bom desempenho na cabine depende centralmente da preparação do profissional para cada trabalho. Se essa máxima é verdadeira de forma geral, para a interpretação de um debate político ela se comprova ainda mais. Isso ocorre porque, nesses casos, a discussão passa por uma ampla gama de temas (política, economia, meio-ambiente, história, sociologia etc.). 

Neste artigo falaremos um pouco sobre a nossa experiência interpretando os debates presidenciais americanos na televisão: características do evento, como nos preparamos para o trabalho e dicas e curiosidades para quem tem interesse em saber mais sobre como é interpretar na TV.


A calmaria (?) antes da tempestade

É imprescindível que o intérprete seja antes de tudo uma pessoa bem-informada, que esteja antenada com o que acontece no mundo diariamente. Sabe aquela notícia sobre a recuperação da economia americana que saiu em um jornal? Ou aquela nota de geopolítica sobre a instabilidade em determinada região? Provavelmente são fatos que terão relevância em um debate. É preciso estar a par do cenário internacional e, se possível, conhecer datas, nomes e fatos em torno dos principais acontecimentos. 

Mas calma, intérpretes de eventos políticos não precisam ser enciclopédias ambulantes! O mais importante é ter a curiosidade (e disposição!) de aprender sobre os mais diversos temas que podem aparecer, bem como delinear uma estratégia para isso. 

Embora possa parecer impossível se preparar quando qualquer assunto pode vir à tona, temos uma carta a nosso favor: os debates presidenciais americanos têm repercussão global, toda a organização do evento é muito criteriosa e as informações sobre as regras e até mesmo os temas que serão tratados, geralmente são divulgados de antemão. Assim, é possível delimitar os assuntos que provavelmente terão destaque, e começar por aí. Para o primeiro debate presidencial de 2020, seis tópicos foram escolhidos: histórico dos candidatos, Suprema Corte, Covid-19, economia, raça e violência nas cidades americanas e a integridade das eleições. Pronto, já temos aí seis grandes temas para começar nossos estudos!

Sabendo os assuntos guarda-chuva do debate, podemos começar a estudar e a fazer um brainstorming sobre quais pontos poderão ser abordados. Vamos tomar o tema da Suprema Corte como exemplo para demonstrar como foi o processo de preparação – seguimos a mesma lógica para cada um dos seis temas destacados anteriormente.


Por que a Suprema Corte estava em pauta?

Uma das juízas, Ruth Baden Ginsburg, havia falecido poucas semanas antes do debate; então certamente haveria perguntas a respeito da indicação de quem ocuparia aquela cadeira. Esse é o tipo de conhecimento que ajuda, considerando que vários nomes serão citados nessa discussão. Nesse caso, é papel do intérprete pesquisar quem seriam os potenciais candidatos ao cargo e seus perfis.

É relevante também ter alguma clareza sobre a importância da Suprema Corte no sistema americano e o seu funcionamento. Sem esse entendimento, é mais difícil o intérprete compreender comentários sobre o assunto que podem vir “sem contexto”, i.e. uma informação subentendida por ser de conhecimento comum. Um elemento polêmico nesse âmbito é que, no último ano do governo Obama, o candidato indicado por ele não foi convocado para a sabatina do Senado sob a alegação de que aquele era um ano eleitoral e que, portanto, a decisão deveria ficar para o sucessor de Obama. Em 2020, também ano eleitoral, Trump fez a nomeação e o candidato indicado por ele acabaria sendo confirmado como juiz da Suprema Corte. Abaixo segue uma imagem de um dos nossos documentos de estudo, com uma linha do tempo de acontecimentos relevantes sobre o assunto, bem como com os nomes dos juízes com suas respectivas inclinações políticas.

Nossos estudos incorporaram o conteúdo, mas também a forma: ou seja, fizemos um levantamento de como as ideias são formuladas, qual o vocabulário utilizado. No caso da Suprema Corte, os integrantes são chamados de “justice” em inglês, não de “judge”. Em se tratando de um órgão que traz alguma semelhança ao nosso Supremo Tribunal Federal, faria sentido traduzir “justice” como “ministro”. Preferimos, entretanto, usar “juiz”, pensando que os consumidores da nossa tradução seriam um público amplo e possivelmente com menos conhecimento sobre o tema. 

Nossa escolha de palavras pode escancarar nossa posição diante de um tema: pense na diferença entre “peste chinesa” e “pandemia” – ambos os termos falam do mesmo acontecimento – um dos assuntos em pauta no debate -, mas cada um denota um estilo retórico e uma visão bastante marcada de geopolítica. O papel do intérprete é representar o orador original na língua de chegada com a maior fidelidade possível – às ideias, às escolhas lexicais e ao tom. Não importa se o candidato está expressando uma ideia da qual discordamos diametralmente, se ele a está defendendo com fervor, a nossa obrigação é fazer jus à fala dele. 

Outro modo bastante interessante de se preparar para um evento como esse é assistir aos debates anteriores. Assim, é possível ver a dinâmica das perguntas e respostas e até mesmo ver o mesmo candidato que será interpretado argumentando e interagindo com o outro. No nosso caso, foi possível ver os debates presidenciais de Trump contra Hillary Clinton de 2016 e os debates de vice de 2008 e 2012 com Biden, aqui como vice do Obama. É possível, inclusive, assistir às versões interpretadas pelos colegas que trabalharam no mesmo evento nos anos anteriores (ou em outros canais). Este é um jeito divertido de montar o nosso próprio glossário e pensar em soluções para algumas palavras que podem ser bastante específicas no mundo da política.

A quantidade de conteúdo para estudar em um evento deste calibre é descomunal; por isso, é importante ter foco e constância na preparação. Ter colegas com quem debater e compartilhar glossários também ajuda bastante!


Game on

Interpretar é uma atividade que por si só já pode nos deixar com os nervos à flor da pele. Interpretar ao vivo, diante de milhões de pessoas em um evento de tão alto nível demanda um domínio do nervosismo um pouco maior… O importante nesses casos é tentar controlar todas as variáveis que podem ser controladas: estudo prévio, exercícios de respiração e preparação vocal, chegar cedo para testar o áudio/microfone (e para não ficar mais ansioso com o risco de chegar em cima da hora ou – jamais! – se atrasar), ter um bom glossário à mão e um bom concabino!

No entanto, assim como em qualquer outro evento ao vivo, há fatores que não podemos controlar, como a qualidade do sinal de áudio e vídeo que recebemos, a velocidade da fala dos oradores, possíveis palavras novas não antecipadas pelos estudos, oradores falando ao mesmo tempo (quem assistiu ao primeiro debate viu a bagunça que foi!), etc. Ainda que não seja possível antever o que vai acontecer, é possível se precaver e decidir antecipadamente o que fazer quando esses imprevistos acontecerem (não ‘se’ acontecerem, ‘quando’ mesmo – acredite, eles irão acontecer!). Por exemplo: quando um candidato falar ao mesmo tempo que o outro, vou falar ao mesmo tempo que o outro intérprete? Quando a qualidade do áudio for insuficiente para interpretar, vou tentar fazer o possível – tirar leite de pedra – ou ficar em silêncio? Quando o orador falar muito rápido e tivermos que editar, quais conteúdos vou priorizar? Quando aparecer uma palavra nova, posso contar com a ajuda do meu concabino? Qual será a dinâmica da ajuda? Estas questões podem parecer simples, mas decidir o que fazer em cada uma dessas situações antes do início dos debates pode economizar uma carga mental importante e pode fazer a diferença na percepção de qualidade dos telespectadores.

 

Acabou?

Uma vez concluído o trabalho, vale muito a pena fazer um debriefing com o colega e refletir sobre erros e acertos no antes e no durante do trabalho – cobrimos tudo que deveríamos ter coberto na preparação? Deixamos de lado algo que era óbvio? Quais dificuldades não previstas surgiram e como lidamos com elas? 

Assistir à gravação também é uma excelente maneira de avaliar o nosso desempenho e buscar oportunidades de melhoria. E, claro, os debates presidenciais tendem a ser três, também há o debate dos vices, e a contar a posse. Identificar os pontos de melhoria nos ajuda a potencializar o desempenho para as próximas vezes.

Certamente há muito o que dizer sobre a experiência de interpretar os debates presidenciais. Após aceitar o trabalho (e se debater um pouco – risos), o foco precisa ser na definição de um plano de estudos para que possamos fazer o melhor trabalho possível.

Neste ano teremos eleições presidenciais no Brasil e, por conseguinte, os debates. Como exercício, que tal aplicar o processo que descrevemos neste texto ao debate, quais assuntos serão debatidos? Qual viés de cada candidato? Quais termos serão utilizados por quem e por quê?

 

Sobre os autores

Renato R. Geraldes é formado em Letras – Tradutor/Intérprete pela UNIBERO e pós-graduado em Interpretação de Conferências pela Universidade Estácio de Sá. É intérprete de conferências desde 2012, tendo trabalhado como intérprete-staff no GRU Airport por dois anos e, depois, fundado a Lingua Franca – Tradução, Interpretação e Consultoria Linguística com a sua sócia Marília Aranha. Juntos, idealizaram várias iniciativas educacionais para tradutores/intérpretes, a mais conhecida sendo o curso EPIC. É membro da APIC e da ABRATES e entre suas principais áreas de atuação estão o âmbito da saúde, finanças, entretenimento, TI, agricultura e aviação. Renato também tem ampla experiência com interpretação simultânea na televisão, traduzindo as entrevistas do The Noite com Danilo Gentili em parceria com a Luana Pires do We Love Translation desde 2016, bem como discursos políticos e debates.

Daniel Veloso é intérprete, tradutor e lexicógrafo profissional há mais de dez anos. Natural de Minas Gerais, é licenciado em inglês pela UFMG, com ênfase em literatura e linguística. Morou em São Paulo, onde fez o curso de Formação de Intérprete pela PUC-SP. Interpreta em eventos de diversas áreas, com destaque para mineração, engenharia, política, literatura e medicina. Traduziu obras no mercado editorial em 2010/2011 e atua como tradutor e revisor técnico desde então. Foi tradutor e editor do Dicionário Oxford de Português, publicado em 2013, e presta serviços para editoras estrangeiras como Collins Cobuild e Oxford University Press.E-mail para contato: danielvsh@gmail.com

Aldo Vidor é formado em Interpretação de Conferência pela PUC/SP (2013), Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade de São Paulo/USP (2010). Tem experiência nas modalidades simultânea, consecutiva e acompanhamento, tanto presencialmente quanto através de ferramentas remotas (RSI). É membro do SINTRA, membro efetivo da APIC com os idiomas Português (A), Inglês e Espanhol (B) e desde o início de sua carreira tem participado de diversos cursos de especialização e atualização profissional em renomadas instituições, como a Universidade de Edimburgo, na Escócia.

 

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