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Os regionalismos e as percepções culturais

 

Eu nasci no Rio de Janeiro, onde morei até os seis anos. Vivi os meus anos escolares em Salvador e, depois, fui para Goiânia, para São Paulo e, agora, vivo na capital setentrional da América Latina, Miami.

A primeira lembrança que tenho de Salvador é do meu tio dando um cachaço (isso mesmo, o famoso “pescoção”) no meu irmão mais velho e explicando que aquilo que ele via não eram pipas e, sim, arraias. Lembro também de um acontecimento na minha sala de aula. A “fessôra” perguntou quem sabia o alfabeto e eu, serelepe, levantei a mão e comecei: “A, bê, cê, dê, ê, éfe, gê, agá, i, jota, éle, eme, ene…”. A gargalhada na sala foi tão alta que não pude terminar e alguém me corrigiu: “Né assim, não, viu? É a, bê, cê, dê, é, fê, guê, agá, i, ji, lê, mê, nê…”.

E, assim, começaram as minhas aventuras com os regionalismos. 

Minha outra surpresa foi com o Ferry, um colega de São Paulo recém-chegado a Salvador. Fui levar uns documentos para ele, que começa a reclamar: “Puta, vocês, baianos, puta, já atendem o telefone, puta, com ‘diga aí’. Nem dão bom dia. Puta, nem perguntam se a gente tá bem. Puta, é duma grosseria, puta, sem igual, puta.”

Eu tive que rir. O digaê ou digaí – pois é, soa como uma palavra só – é nosso jeitinho baiano de perguntar como a pessoa vai e se tá tudo bem – tudo enrolado em uma frase pequeninha pra não roubar tempo –, enquanto os puta, que soavam tão normais para meu querido paulistano, eram uma ofensa para os ouvidos baianos nos idos de 1970.

Entre lá e cá, muitas coisas passaram. Vivi em Goiânia, onde o pessoal tem uma malemolência no falar que dá gosto e a mania de repetir o verbo da pergunta no começo da resposta: “Ô, seu Eduardino, tem coalhada fresca hoje?” “Tem coalhada fresca, não, moça.” Quer dizer, seu ânimo vai aumentando com cada palavra – Tem. Coalhada. Fresca. –, mas, aí, vem o bendito do “não” para estragar o dia.

E a linguagem corporal? Ela nem sempre se traduz da mesma forma em outra cultura.

Já em Miami, durante um processo de preparação de testemunha, o cliente, pessoa humilde, entrou no escritório do advogado, que estava de pé para cumprimentá-lo. O cliente se deu conta de que era bem mais alto que o advogado e ficou incomodado. Tão incomodado que se encolheu na poltrona para que seus olhos não ficassem à altura dos olhos do “seo doutô”. Essa deferência quase lhe custa caro, pois o advogado entendeu aquilo como vergonha e comentou comigo depois: “Ele nem tem coragem de me olhar nos olhos, se esconde na cadeira. Culpado. Não tenho dúvida.”

Bom, eu não sabia como dizer ao senhor doutor que sua primeira atitude deveria ser ouvir o que o cliente tinha a dizer antes de formar uma opinião. O que falei foi que a atitude do cavalheiro era uma demonstração de respeito, nada mais. O advogado ficou intrigado e mudou sua conduta para com o cliente. Ufa!

Eu, que já vivo em Miami há um bom tempo, me esqueci desses detalhezinhos bem brasileiros e de como os regionalismos linguísticos e comportamentais avançam língua adentro, criando situações inusitadas. 

E, nesse fim de semana, atendi a chamada de um amigo, que me cumprimenta com um belo e bem carioca: “Tá tudo bem por aí, Gio?”. Respondo, bem baianamente: “Chegando. Digaí?”. Ele ficou meio perdidão. “Ah, você tava fora e está chegando em casa agora?” Eu ri, pois esqueci com quem falava. “Não. Você perguntou se tava tudo bem e eu respondi ‘chegando’ no sentido de que tá quase tudo bem, quase ficando bem. E o digaí é o ‘E com você? O que me conta?’ telegráfico da minha terrinha querida.”

Será que a gente tá mesmo falando a mesma língua?


Gio Lester foi presidente da Abrates de 2020 a 2022. Sua carreira em interpretação e tradução teve início em 1980. Ex-Administradora Assistente e Administradora da Divisão de Interpretação da ATA, co-fundadora e ex-presidente (por dois mandatos) da ATIF, editora-chefe do blog da NAJIT (2016-2020), contribuinte para várias publicações de classe (impressas e on-line), membro da IAPTI, vice-presidente interina da NBCMI (entidade estadunidense certificadora de intérpretes de medicina), co-organizadora do programa de interpretação da University of the Bahamas (Nassau, Bahamas), chefe do Comitê  Consultivo de Tradução e Interpretação do Miami-Dade College (2017-2019),  etc. Gio também organiza vários eventos de treinamento para tradutores e intérpretes e apresenta palestras para a Florida International University, ATA, NAJIT, ATIF, NBCMI, IAPTI, Abrates, Interpreter Education Online, De La Mora Institute, entre outros.

 

Queridos associados, gostaríamos de agradecer a vocês por terem acompanhado toda a trajetória da Metáfrase, que já teve dois formatos: o de blog e o de revista on-line. Este é o último artigo que publicaremos na Metáfrase. Em breve, este espaço se tornará um lugar para a diretoria escrever artigos sobre o universo da tradução e da interpretação e falar sobre o que ela tem feito e seus planos para o futuro. Continuem nos acompanhando aqui e nas nossas redes sociais. E lembrem-se de que enviamos avisos sobre a associação e os parceiros por e-mail.

Por fim, queremos agradecer à Gio Lester pelo texto e por liderar a gestão de 2020 a 2022. Enquanto enfrentávamos a pandemia, Gio e os outros colegas diretores trabalharam arduamente para atender às necessidades de todos os associados.

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(3) Comments

  1. Gio Lester

    Fico esperando ansiosamente pela nova encarnação da Metáfrase. E obrigada pelo carinho. Fazer algo por amor é uma recompensa por si só.

    E parabéns à nova Diretoria: vocês estão arrasando!!!!!!

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