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O que nos reserva o futuro?

 

Este artigo foi escrito para complementar o evento ao vivo realizado pela Multilingual Media e Nimdzi, The Past, Present, and Future of Interpreting (O presente, o passado e o futuro da interpretação), no Dia Internacional da Tradução e Interpretação, 30 de setembro de 2021. Tive o prazer de compartilhar a tela com Ewandro Magalhães, cofundador e chefe de línguas na KUDO, que falou sobre o passado de nossa profissão; Sarah Hickey, vice-presidente de pesquisas na Nimdzi Insights, que falou sobre o presente da interpretação; e Tucker Johnson, anfitrião magnífico e cofundador e conselheiro na Nimdzi, que cuidou das questões técnicas do evento em si.

Eu fui o oráculo. Arriscado, mas venho praticando isso desde que tinha 5 aninhos. Foi quando decidi que queria ser professora. E aos 20 anos, eu era professora. Talvez o Ewandro se recorde que, em 2016, conversei com as empresas organizadoras de eventos virtuais e as plataformas de interpretação remota tentando convencê-las a formar uma parceria. Naquela época, ninguém compartilhava minha visão que hoje é realidade.

A ficção científica e a interpretação

A interpretação simultânea é filha da tecnologia e inventividade. Embora muitos digam que a interpretação simultânea nasceu durante o Tribunal de Nurembergue, apesar dos argumentos contra, eu creio que estejam todos errados.

A ficção científica nos deu a biotecnologia necessária para que a interpretação simultânea acontecesse. Adam Douglas criou uma forma singular, interespécie para permitir que a interpretação simultânea ocorresse. Para os humanos, a primeira ocorrência de interpretação simultânea teve lugar no espaço sideral, na área de carga de uma nave dos Volgons.

Um dos aspectos da biotecnologia de Douglas, que as empresas atuais talvez queiram levar em consideração, é que ela não era baseada em palavras para que a comunicação acontecesse.

O ano era 1978, e o Guia dos Mochileiros das Galáxias fez o seu debut na televisão. Seus heróis viajavam entre planetas, mas como eles se comunicariam com as diferentes espécies que encontrariam? Converter sons e palavras em seus equivalentes em outras línguas não é fácil. Nós sabemos!

A solução, o peixe babel, usa a energia de ondas cerebrais na comunicação. Ele converte as frequências de ondas sonoras do subconsciente em uma matriz formada por frequências conscientes e transmissões dos nervos coletadas nos centros de fala do cérebro. Ele, então, excreta essa matriz telepaticamente, e ela é decodificada no cérebro do receptor. 

Soluções do século XXI

Que eu saiba, a primeira tentativa feita para trazer uma adaptação da ideia de Douglas para o mercado foi em 2018. A Waverly Labs nos brindou com o Pilot (intra-auricular). O “cérebro” do aparato é um aplicativo telefônico. Outros aparelhos similares chegaram ao mercado desde então, todos eles usando a tecnologia de conversão de fala em texto e texto em fala (STTS, em inglês). 

O novo produto da WaverlyLabs é o Ambassador. Ele oferece três modalidades: Lecture (palestra), para grupos; Converse (conversa), que permite conversas multilíngues; e Listen (escuta), que é passivo. Sérgio Del Río, o CEO da Waverlylabs, durante uma apresentação para a Associação Internacional de Intérpretes de Conferência (AIIC), em janeiro de 2021, disse que a empresa usa seus produtos em suas fábricas na China.

Em 2020, a TranslateLive criou o Instant Language Assistant (Assistente Instantâneo de Línguas) ou ILA (sigla em inglês), que oferece versões faladas e escritas do que é dito. O ILA também funciona para pessoas surdocegas: ele tem uma tela em braile. Peter Hayes, CEO da TranslateLive, também apresentou seu produto para a AIIC em janeiro de 2021.

Também há coisas acontecendo em línguas de sinais: luvas que falam, por exemplo, e avatares nos websites. Estamos, também, digitalizando mais línguas faladas na tentativa de evitar que desapareçam. O objetivo é desenvolver glossários que serão, depois, usados pela IA.

Mantendo o elemento humano em foco

A nosso favor, temos algo que a ficção científica não levou em consideração no tocante a línguas: os órgãos de normatização, como ISO, ASTM, ABNT, CEN. Essas são apenas algumas das organizações normatizadoras internacionais, nacionais e regionais. Não podemos ignorar o papel das associações profissionais, tampouco. São elas que mantêm o elemento humano sempre em foco e protegem nossos interesses.

“Nós aproximamos culturas. Nós aproximamos pessoas. Nós colocamos ideias em linguagem que as pessoas possam absorver rapidamente. Nós unimos o planeta.”

Dr. Jonathan Downie, em seu livro Interpreters vs Machine (Intérpretes x Máquinas), disse que “O máximo que uma ferramenta pode fazer é refinar a qualidade inerente de uma artista” (traduções livres, minhas). Exato. Em nosso caso, as ferramentas nos ajudam facilitando o acesso à informação, mas somos nós, os humanos, que decidimos quais termos usar, porque nós conhecemos as línguas, culturas e assuntos envolvidos.

Enquanto não chegamos a uma solução biotecnológica nessa área, o que eu vi de mais avançado, de novo, na ficção científica, foi criado por Gene Rodenberry: máquinas e humanos trabalhando lado a lado. A tenente Uhura não foi só um papel revolucionário para mulheres, foi também foi revolucionário para nossa profissão. A importância de nossa profissão ganhou um holofote em um ambiente inesperado. O programa Jornada nas Estrelas se passa no século 23 e, mesmo lá, nenhuma máquina foi criada que possa substituir um ser humano na comunicação intra e interespécies. Os linguistas ainda são indispensáveis para decodificar línguas e alimentar suas descobertas no “tradutor universal”.

Deu pra entender?

Já chegamos lá?

Há pouco comecei a usar o app iPhone Translate para me comunicar com meu esposo. Buscava, já há tempos, uma forma de me comunicar com ele na minha língua e acabei apelando para a tecnologia. Depois de 30 anos, seu vocabulário em português não passou de 11 palavras. O app também reproduz por escrito o que é dito, e eu achei que isso poderia nos ajudar. Tudo começou com um pouco de sarcasmo da minha parte, mas depois me dei conta de que ele poderia ajudar meu marido a se comunicar com Nina, a diarista que vem uma vez por semana a nossa casa. Ela é hondurenha e não fala inglês; o espanhol do meu marido é um pouco melhor que seu português, mas só seria útil em restaurantes. Seu estômago comanda os centros de linguagem do seu cérebro.

Alan, meu marido, e Nina bateram um papo curto pela primeira vez desde que ela entrou em nossas vidas em abril, graças ao app do iPhone. Foi uma revelação para eles e um alívio para mim que já não teria que ser a intérprete da casa.

E qual é a resposta do oráculo à pergunta, “Já chegamos lá?”

Eu li trabalhos escritos por Marc D. Houser, Robert C. Berwick, Noam Chomsky e outros e descobri que os biolinguistas não estão nem próximos de desvendar os mistérios da aquisição de línguas. Os progressos feitos ainda não nos permitem conceber um processo biotecnológico para decodificar mensagens, quer inter ou intraespécies.

A maioria das pesquisas têm como foco o processo usado por nós para transformar pensamentos em fala. Talvez, um dia, os linguistas encontrem a resposta, mas eu não creio que será usada para dar vantagens às máquinas sobre intérpretes. Não enquanto eu estiver viva. 

Aviso de alerta

Douglas nos deixou um aviso de alerta. Ele disse, em seu livro, que o uso do peixe babel resultou nas guerras mais sangrentas e atrozes. Pode não fazer sentido, mas pense no que aconteceu com São Jerônimo. Nós o perdemos por causa de seu trabalho, fofoca e inveja. Já deixamos essas coisas para trás? Conseguiremos implementar mudanças, como seres humanos, para prevenir que aqueles conflitos se repitam?

Vamos pensar já no futuro. Muitas coisas têm que acontecer antes que as máquinas possam fazer o trabalho dos intérpretes sem uma interface humana. De acordo com a visão de Gene Roddenbery, nem mesmo no século 23.

 

Palavra da presidente

Gio Lester é a atual presidente da Abrates. Sua carreira em interpretação e tradução teve início em 1980. Ex-Administradora Assistente e Administradora da Divisão de Interpretação da ATA, co-fundadora e ex-presidente (por dois mandatos) da ATIF, editora-chefe do blog da NAJIT (2016-2020), contribuinte para várias publicações de classe (impressas e on-line), membro da IAPTI, vice-presidente interina da NBCMI (entidade estadunidense certificadora de intérpretes de medicina), co-organizadora do programa de interpretação da University of the Bahamas (Nassau, Bahamas), chefe do Comitê  Consultivo de Tradução e Interpretação do Miami-Dade College (2017-2019),  etc. Gio também organiza vários eventos de treinamento para tradutores e intérpretes e apresenta palestras para a Florida International University, ATA, NAJIT, ATIF, NBCMI, IAPTI, Abrates, Interpreter Education Online, De La Mora Institute, entre outros.

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