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O direito autoral e o direito à imagem dos Tradutores e Intérpretes de Línguas de Sinais (Tils)

O assunto é complexo e pouco abordado mesmo quanto aos intérpretes interlíngues em geral. O tema é mais comum quando se trata da tradução para a escrita. Apesar de os intérpretes que atuam entre línguas orais também enfrentarem esta problemática, vou comentar aqui a situação bem específica dos chamados Tils (tradutores e intérpretes de línguas de sinais) que atuam entre línguas orais e línguas de sinais (língua de sinais francesa, língua de sinais sueca, língua de sinais australiana, língua de sinais russa etc.) ou entre duas línguas de sinais. No caso do Brasil, a língua de sinais envolvida é, principalmente, a Libras (língua de sinais brasileira), mas não devemos nos esquecer de que existem também línguas de sinais indígenas, de imigração, de fronteira, que enfrentam as mesmas questões.

Quando a direcionalidade é da Libras para a língua portuguesa, utilizamos a nossa voz, assim como os intérpretes de línguas orais, mas também expomos o nosso corpo quando interpretamos da língua portuguesa para a Libras. A atenção a este aspecto, não só no âmbito do ensino dos futuros profissionais, como no dos contratantes e dos clientes de nossos serviços, praticamente não existe. No entanto, sem um devido cuidado, são comuns atos ilícitos, mesmo que não sejam de má fé. Podemos citar alguns exemplos muito comuns de Tils que, sem ter assinado qualquer tipo de contrato respectivo a seus direitos:

  • Trabalham em conferências e encontram, depois, material em vídeo sendo comercializado com a sua imagem.
  • Deparam-se com suas interpretações, não autorizadas, na Internet.
  • Interpretam em EaD, e sua imagem é aproveitada em várias edições do curso, mesmo tendo sido acordada somente uma edição.
  • Suas interpretações são fotografadas ou filmadas, sem seu consentimento, e depois exibidas em aulas de Libras ou de interpretação.

Muitas outras situações ocorrem devido a este desconhecimento dos aspectos básicos de proteção aos direitos dos Tils. Embora a questão já existisse anteriormente, o aperfeiçoamento da tecnologia audiovisual acabou propiciando um descontrole sobre a permissão e sobre a circulação de material traduzido ou interpretado sob a forma de textos, gravações de voz e imagem. Nesse sentido, um pouco de conhecimento sobre a legislação é desejável para, ao menos, percebermos e nos defendermos de situações que possam nos prejudicar.

Embora já existam algumas discussões sobre o direito autoral, é sempre bom lembrar que estamos respaldados pela Lei Federal 9.610/98, Lei de Direitos Autorais (LDA). Esta lei nos qualifica como autores de nossas traduções e, consequentemente, interpretações como obras derivadas. Os direitos autorais dividem-se, basicamente, em direitos morais e direitos patrimoniais. Os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis. Já os direitos patrimoniais são negociáveis. Isto significa que a autoria de uma tradução ou interpretação não pode ser atribuída a outra pessoa, eliminada ou não mencionada. Basta uma rápida olhada em plataformas de vídeo, como o YouTube, por exemplo, para vermos que boa parte dos vídeos com Tils não dá crédito a quem fez o trabalho, seja ele voluntário ou remunerado. 

Já o direito à imagem é frequentemente relacionado aos serviços prestados pelos Tils que, pelas características visuais das línguas de sinais, têm no seu corpo, incluindo a face, a manifestação da tradução ou interpretação, que será registrada ou não. O corpo do Tils só não é exposto no caso da tradução da Libras para a língua portuguesa escrita. Portanto, é de extrema importância que os Tils tenham um cuidado sobre a utilização de sua imagem (visual ou sonora) em produções individuais e coletivas em que haja veiculação de imagem ou voz. Apesar de não existir até agora, no Brasil, uma lei específica sobre o direito de imagem, existe legislação relativa e que pode ser acionada caso surja a necessidade: artigo 5 da Constituição Federal; artigo 20 do Código Civil; título III, capítulo I, dos crimes contra a propriedade intelectual e subsequentes redações do Código Penal e no Marco Civil da Internet.

Além da cessão ou da licença/autorização, existe o fator financeiro, de remuneração, pelo uso do produto do trabalho da interpretação, quando para fins de comercialização. Muitas vezes, o contratante não avisa aos Tils que suas obras farão parte de algum produto que será comercializado, por exemplo, em filmagens de conferências. 

Não é incomum, atualmente, que o acordo de trabalho seja feito somente de forma verbal (o que não aconselhamos), e só momentos antes do início do evento seja oferecido um contrato escrito que, sem a devida antecedência, não consegue ser revisado de forma sistemática. O Tils não quer perder o trabalho e acaba assinando sem uma análise mais criteriosa dos termos do contrato. A orientação é que, já nos primeiros contatos para a contratação, antes do evento, todos os detalhes do serviço sejam esclarecidos e acordados por escrito. 

Não aceite um trabalho no qual não lhe possibilitem o tempo necessário para analisar o contrato e que não esteja muito bem descrito: remuneração, forma e prazo de pagamento, tipo de tradução e/ou interpretação que será feita, duração, existência de colegas para revezar, ou trabalho em equipe maior, se vai haver gravação de imagem e/ou voz, comercialização etc. Considere que a autorização para que a interpretação seja gravada não pressupõe liberar a veiculação do vídeo indiscriminadamente. É possível autorizar uma gravação para uso privado, mas não para disponibilização ou divulgação a outros, muito menos para fins lucrativos, como no exemplo já citado de suas interpretações serem comercializadas sem nenhum tipo de contrato. 

No emaranhado da legislação brasileira, a ciência jurídica não é uma ciência exata, muito menos para nós, leigos. Por isso, sempre vamos depender da “interpretação” dos agentes do direito, o que não é razão para nos desanimar. Devemos manter em mente que informação e planejamento devem ser nossos aliados em nossa vida profissional.

Vivemos em uma sociedade na qual a privacidade enfrenta grandes obstáculos, pois temos câmeras: de vigilância nas ruas e em prédios, nos celulares e até acopladas a viaturas e uniformes de policiais. No entanto, nem tudo é permitido. Se houvesse um resumo do que tratamos até agora, eu poderia citar o Art. 20 do Código Civil (Lei 10406/02), que instrui que:

Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Então, como podemos nos salvaguardar em termos profissionais? O ideal é que adotemos o procedimento de utilizar contratos, mesmo que para serviços rápidos e, supostamente, de menor importância quando, no ambiente de trabalho, tenhamos a possibilidade de que nossa imagem seja gravada, divulgada e comercializada. Outra sugestão é que as associações de classe discutam esta temática e até instituam uma parceria com algum serviço jurídico de instituições de ensino superior para sanar dúvidas e oferecer apoio aos seus associados. Tenhamos em mente que direitos autorais e direitos à imagem, por serem diferentes, exigem termos de contrato também diversos.

Muitos pontos ainda demandam discussões. Na área acadêmica, inclusive, nós nos deparamos com situações ainda não investigadas à luz desses direitos. Por exemplo: em nossa área é comum um pós-graduando surdo ter a sua sinalização em Libras traduzida diretamente para um texto acadêmico em português escrito. Neste caso, teríamos a questão: o texto escrito resultante seria de direito autoral da pessoa surda ou do Tils? Que obra híbrida é essa? Considerando que, em quase a totalidade destes casos, ou não existe registro de nenhum vídeo como “obra original”, ou, se existem, são trechos, sendo que a tradução escrita é de autoria do Tils, como obra derivada. 

Encerro apontando para a necessidade de maior atenção ao direito, não só de imagem, mas também autorais dos Tils, pois, como apontei brevemente, existem muitas questões não resolvidas ainda. O tema tem sido tratado no âmbito jurídico, mas, além de existirem poucos textos que tratem do assunto em nossa especificidade, também faltam conscientização e esclarecimento dos profissionais para exigirem que seus direitos sejam respeitados.

 

Sobre a autora

 

Maria Cristina Pires Pereira trabalhou como tradutora e intérprete de Libras (Tils) e agora se dedica ao ensino e pesquisa no curso de Letras, bacharelado em Tradutor e Intérprete de Libras e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 


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