Parece que meu retorno ao Brasil foi ontem, depois de quase uma década vivendo nos Estados Unidos. Durante metade desses dez anos, dediquei-me a aprender e a trabalhar como intérprete num hospital de uma cidade de Massachusetts. Antes de viver fora do Brasil, nunca havia sequer passado pela minha cabeça que alguém, nesse “mundão-véi-sem-porteiras”, precisaria de voz, dentro de um hospital, para se expressar e para conseguir compreender o que lhe era dito. Provavelmente, porque eu nunca havia precisado disso, e também, porque cresci num país cuja amplitude linguística e cultural nunca tenha sido, de fato, problematizada, nem levada a sério a ponto de nossa atenção ser fisgada para o óbvio: bem mais perto de nós do que imaginamos, há pessoas que não falam nosso idioma e que, por isso, estão impedidas de se comunicar, de elaborar suas dores, suas defesas, seus sonhos, suas necessidades de forma geral.
Eu cresci num país tropical, com uma das maiores diversidades ambientais e culturais do planeta, e… monolíngue. Não na sua composição étnica, nem na alma de seu povo, mas no que tange à língua. Brasileiro fala o quê? Português, ué! Então quer dizer que os falantes dos outros 274 idiomas indígenas não são brasileiros? E os surdos nascidos no Brasil, os usuários da Língua Brasileira de Sinais (Libras), acaso têm outra cidadania? O país do Carnaval não recebe turistas estrangeiros falantes de outros idiomas? Nossos irmãos além-mar, que aqui chegam à procura de um lar pelos mais variados motivos (refugiados de guerras, sobreviventes de catástrofes ambientais, retirantes), à procura de melhores condições sociais ou, simplesmente, que vêm atraídos pelo sonho de viver a alegria brasileira, devem se calar ou ser amordaçados?
Em 2008, quando iniciei minha pesquisa sobre interpretação comunitária no Brasil, uma das frases que eu mais ouvia era: “Intérprete para quem? Não tem demanda para isso!”. Indo além, a dificuldade não estava apenas em encontrar material de estudo, mas também em encontrar interlocutores. Sou grata ao meu orientador à época, Markus J. Weininger, por ter embarcado comigo em mares ainda desconhecidos por estas bandas. Durante entrevistas feitas na pesquisa, que focou na necessidade de serviços de interpretação em contextos médicos no Brasil, algumas soluções foram apresentadas por agentes de saúde para compreender pacientes que, surpreendentemente, não falavam português. Restava a essas pessoas “usar gestos e linguagem corporal; pedir socorro aos médicos bilíngues; rezar para dar certo”. Mas isso não parecia ser um grande problema, de fato, já que é possível, na maioria das vezes, “reconhecer o sintoma só olhando para o paciente”. Ora, portanto, quem precisa de intérprete? E quem quer ser esse paciente que usa o corpo cheio de dor para externalizar a própria dor que sente?
Intérpretes são profissionais treinados para traduzir interações entre pessoas que não falam o mesmo idioma. No sentido mais amplo, traduzir significa, além de converter palavras, trazer à superfície características culturais implicadas na comunicação. Ao fazer isso, intérpretes encontram os mais diferentes desafios éticos para que possam atuar sem deixar que sua voz se sobressaia àquela dos que realmente precisam falar.
Estamos em 2021, passaram-se quase treze anos desde que iniciei minha saga pela conscientização da necessidade de intérpretes comunitários no Brasil. Tive a oportunidade e a honra de ver florescer, ao longo da última década, ainda que a passos de formiga, a consciência de que, no Brasil, pessoas não falantes de português também têm direito à fala, à compreensão, à tomada de decisões e à interação segura, enquanto procuram e usam serviços essenciais. Nos últimos anos, vimos dezenas de pesquisas e iniciativas abordando outros contextos da interpretação alheios aos contextos de conferência. Enfim, parece que a interpretação está começando a sair das cabines e, ainda que timidamente, pode ser vista por aí, atendendo a um público bem diferente daqueles encontrados nas bancadas dos nossos congressos.
Está em trâmite no Senado brasileiro, por iniciativa do deputado Paulo Paim, o projeto de lei 5182/2020, cujo objetivo é reconhecer a interpretação comunitária como profissão e tornar obrigatória “a alocação de tradutores e de intérpretes comunitários em todas as instituições públicas federais, estaduais e municipais, de forma permanente ou através da formação de núcleos especializados de tradução e de interpretação comunitária, especialmente organizados para atender às demandas específicas de cada área”. Nessa etapa tão importante de profissionalização, o papel do intérprete e a maneira de conduzir suas habilidades são pontos de altíssima sensibilidade que devem ser discutidos e documentados, a fim de servirem como guia para nossas ações, delimitarem e legitimarem a atividade.
Como representante da Associação Internacional de Intérpretes Médicos por alguns anos, tenho o dever de alertar para a urgência de olharmos com muita responsabilidade e clareza para a figura que nos é conferida quando vamos interpretar. É crucial que a interpretação comunitária atenda às diferentes demandas linguísticas e culturais presentes no Brasil e que se instituam documentos balizadores e organizações profissionais que façam revisões periódicas sobre pesquisa, competências da profissão e treinamento.
Austrália, Estados Unidos e Canadá, entre outros, são países que trazem em sua história pistas valiosas que podem nos livrar de incorrer em erros. Para continuar com essa prosa, passo a palavra, para minha colega, ex-aluna e amiga, Jaqueline Nordin, uma interlocutora encontrada nas bancadas do primeiro Simpósio Brasileiro de Interpretação (SIMBI) em 2013, onde ainda pouco se falava de interpretação comunitária. Que ela conte essa outra parte da história.
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O Brasil não é monolíngue, mas os serviços públicos são oferecidos somente em uma língua. Temos mais de 270 línguas indígenas vivas no Brasil hoje, pois deixamos morrer mais de 1.500 línguas indígenas. Não nos orgulhamos destes números, obviamente, mas não podemos dizer que a interpretação comunitária ou a interpretação forense estejam pagãs no Brasil. Hoje, no mundo da interpretação é o que se fala mais. Sem mencionar nossos colegas intérpretes e professores acadêmicos em Libras, que vêm desenvolvendo um trabalho excepcional nesta área, abrindo caminho nesta mata fechada, literalmente com as próprias mãos.
“Mas, por que agora?”
“Em time que está ganhando, não se mexe!”
“No Brasil, isso não funciona!”
“Sempre foi assim, por que mudar agora?”
“Por que prestar atenção nos presos estrangeiros pobres e negros (na maioria dos casos), nos indígenas, nos migrantes?”
Fala-se em interpretação comunitária nos Estados Unidos há 30 anos, e na Europa, há 50 anos. Prestei serviço como intérprete ad hoc por quase uma década na justiça federal do Brasil e, durante este tempo, percebi que havia um caminho longo pela frente, no que se refere ao acesso à justiça pelos que não dominam a língua portuguesa. O acesso é igualitário, mas o entendimento nem sempre. Estar presente fisicamente não significa estar presente linguisticamente em seu próprio julgamento, onde algumas pessoas vão decidir o destino da sua vida pelos próximos anos com base, tanto na sua história quanto em outros elementos jurídicos, tais como autoria e materialidade, e também o livre convencimento do juiz quanto às razões que levaram o réu a praticar certos atos.
A linguagem jurídica, por si, já deixa muita gente “letrada” sem entender absolutamente nada. Ela é, sem sombra de dúvidas, impenetrável para aqueles que não estudaram direito. Então, a verdadeira função do intérprete neste caso seria fazer a pessoa entender o que está acontecendo? NÃO! O intérprete dá voz a estas pessoas, mas se elas querem ser entendidas, elas têm a responsabilidade de se fazer entender. Simplificando, a responsabilidade do intérprete é facilitar que as partes falem na mesma língua, não de explicar nada. O intérprete repete o que é dito.
Eu sou migrante aqui na Suécia e estou no mesmo cesto que os outros migrantes. Sofro os mesmos preconceitos que outros sofrem. Brasileira, cabelo escuro, olhos escuros… Não, aqui não é diferente de nenhum lugar do mundo! Imaginem! Brasil, sinônimo de carnaval, biquíni, samba, Cidade de Deus. Enfim, os “ignorantes” que aqui vivem também têm essa visão limitada do Brasil. Mas será que, pelo fato de sermos brasileiros, somos peritos em Brasil? Será? Você conhece seu povo mesmo?
O Brasil vai continuar o caminho do progresso em passos lentos ou passos mais rápidos, e isso depende de nós, os verdadeiros protagonistas da história da revolução da interpretação. Cada profissional consciente traz consigo o sonho de ver um país menos desigual. De modo geral, este é o desejo de muitos, mas precisamos nos livrar do estigma do jeitinho brasileiro, do dois pra mim e um pra você, do jogar a sujeira pra debaixo do tapete “e depois a gente vê”, do improviso interminável nas instituições públicas quando alguém não fala português, mas precisa do serviço.
Assim como eu, o estrangeiro leva consigo a sua raiz, seus costumes, seus hábitos, sua culinária, sua cor de pele, de olho, de cabelo, e a única coisa que precisamos realmente ter é respeito pelos povos, se não por livre e espontânea vontade, mas por respeito ao que está escrito na Constituição Brasileira e nos inúmeros tratados de direitos humanos firmados pela nossa nação em convenções mundiais. Talvez nunca vejamos a equidade absoluta no Brasil, mas em qual país existe isso mesmo?
Sobre as autoras
Mylene de Queiroz-Franklin é defensora dos direitos básicos de pacientes. Sua história começou dentro de hospitais nos Estados Unidos, onde atuou como intérprete na área da saúde, intermediando consultas e outros serviços médicos para pacientes de língua portuguesa. Essa experiência a estimulou a elaborar, em 2011, a primeira pesquisa feita no Brasil sobre as demandas e a importância de serviços de interpretação em hospitais nacionais. Elaborou, em 2012, o currículo do curso Healthcare Interpreting (Portuguese I), para o MCI da Glendon. Com vasta experiência em plataforma de educação à distância, vem formando alunos de várias partes do mundo.
Jaqueline Nordin tem sólido conhecimento em interpretação simultânea e consecutiva e tradução à prima vista na área jurídico-criminal, adquirido nos mais de nove anos prestando serviços à Justiça Federal do Brasil na cidade de Guarulhos em audiências criminais, totalizando mais de 700 horas de interpretação em audiências. É líder e coordenadora do projeto Interpretação Forense no Brasil, que conta com o apoio de juízes federais, estaduais, intérpretes e associações internacionais.
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