Republicação da entrevista com Sérgio Molina Mosteirin, tradutor de Quixote, para o número 2 da revista Metáfrase, de dezembro de 2016.
Nascido em 1964, em Buenos Aires, Sérgio Molina veio ainda criança para o Brasil. Em meados dos anos 1980, começou a carreira junto com sua mulher, Rubia Goldoni, traduzindo principalmente livros do espanhol para o português brasileiro. Estudou Ciências Sociais, Letras, Editoração e Jornalismo na Universidade de São Paulo, voltando o foco à tradução literária no ano de 1986. Entre suas traduções, estão obras de Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sabato, César Aira, Javier Cercas e tantos outros, e sua produção já compreende mais de uma centena de livros traduzidos, principalmente de ficção literária, além de artigos para jornais e revistas. Em 2004, sua tradução da primeira parte de D. Quixote para a Editora 34 ganhou o Prêmio Jabuti de Tradução. Sérgio concedeu esta entrevista à Metáfrase por e-mail.
Como e quando você resolveu ser tradutor?
Não houve um momento em que parei e falei: muito bem, agora vou virar tradutor. A tradução em sentido amplo ocupa um lugar importante na minha vida, no mínimo, desde meus nove anos, quando me mudei – ou fui mudado – da Argentina para o Brasil. Mas vocês querem saber da minha estreia na profissão, não é? Foi em meados de 1985, graças a uma oportunidade oferecida por duas pessoas, Mário de Moura e Rubia Goldoni. O primeiro era um editor português radicado no Brasil que fez uma coisa insólita: para recrutar colaboradores, simplesmente publicou um anúncio nos classificados de emprego. Não recorreu a indicações de conhecidos, como é a praxe dominante até hoje. O anúncio, na verdade, pedia alguém para assumir a revisão dos livros da editora Vértice, um selo literário da Revista dos Tribunais que o De Moura estava organizando, e quem respondeu foi a Rubia, minha mulher. Ao entrevistá-la e saber que ela estava fazendo mestrado em Literatura Espanhola, o editor propôs contratá-la não como revisora, mas como tradutora do espanhol, e lhe confiou uma reunião de artigos e conferências de Alejo Carpentier. Aí, à medida que ela foi se envolvendo com a tradução, começamos a conversar sobre o processo, as dificuldades dos textos e as possíveis soluções… e quando fomos ver já estávamos praticamente traduzindo em dupla. Ela então propôs ao editor formalizar essa parceria, e ele aceitou. Devo, portanto, minha entrada no ofício à honestidade e generosidade de ambos. Houve ainda uma terceira pessoa sem a qual eu não teria prosseguido: José Antônio Arantes, um grande tradutor que, na época, integrava a equipe de editores da recém-criada Globo Livros. Ele me conhecia através de uma ex-professora de literatura, conhecia alguns textos meus do colégio e, ao saber que a Rubia e eu estávamos terminando nossa primeira tradução, resolveu nos chamar. Ele nos encomendou uma série de livros que vertemos em parte em dupla, em parte individualmente. Foram seis em pouco menos de dois anos, entre 1987 e 1988. Essa foi minha arrancada inicial.
O que é, para você, ser tradutor?
Acima de tudo, é a chance de participar do diálogo literário de uma forma privilegiada, realizando um mergulho profundo nos textos, praticando um modo hiperpotencializado de leitura e exercitando a reescrita num minucioso artesanato da palavra. Quando se dispõe de prazos compatíveis, também inclui uma pesquisa profunda, bem semelhante à da crítica literária. Para quem ama a literatura, portanto, é o paraíso. Mas traduzir, como vocês bem sabem, também tem o seu lado infernal: a angústia da imperfeição que costuma nos assediar. Com o tempo, aprendi a superar esse dualismo inferno-paraíso, entendendo que os temores nos ajudam a ser mais rigorosos, a sustentar uma postura de atenção e autocrítica. A questão é manter o controle para que essa angústia não vire uma neurose e estrague o imenso prazer que todo o processo pode proporcionar. Assim, como em tantos outros aspectos do ofício, o desafio é encontrar – e manter – o equilíbrio. Numa palavra, ser tradutor é ser equilibrista.
Você já traduziu alguns autores considerados canônicos. Existem diferenças, em termos de cuidados e responsabilidades, em relação a outros tipos de texto? De que forma isso se refletiu no processo de tradução do Quixote?
Ao traduzir, procuro ter sempre o máximo respeito pelo texto-fonte, sem importar se ele é mais ou menos canônico. Na verdade, praticamente tudo o que traduzo já integra algum cânone, embora evidentemente haja gradações. D. Quixote está no topo dessa escala, e por isso ao traduzi-lo tive que lidar não apenas com as dificuldades intrínsecas de um grande texto literário, mas também com a produção dos especialistas que o estudam. É uma massa de informações para a qual não convém fechar os olhos, porque contém orientações fundamentais, mas, pela sua imensidão e minúcia, é fácil perder-se no seu labirinto. A escolha do que é pertinente é bem delicada. Ao trabalhar com um clássico, também é preciso decidir como lidar com as traduções realizadas anteriormente, se você vai consultá-las ou não, de que maneira dialogará com elas. Eu optei por não as ignorar, procurando entender as características de cada uma para melhor diferenciar o meu projeto.
Como é sua rotina de tradução? Qual é seu método para traduzir? Ele varia de acordo com o livro?
Em períodos tranquilos, começo o dia relendo e corrigindo o que traduzi no dia anterior, o que me toma mais ou menos metade da manhã, e dedico o restante do dia a completar a cota reservada para cada jornada, que ronda as dez laudas. Ao completar o livro, faço uma nova revisão, de preferência no papel, redijo as notas e, quando é possível, resolvo dúvidas com o autor. Infelizmente, essa rotina bem regrada é excepcional, porque tudo depende das demandas dos clientes, que muitas vezes se sobrepõem. Há temporadas em que devo avançar em duas ou três obras ao mesmo tempo, e aí a rotina se resume a trabalhar até o limite da resistência. Quanto ao método, ele de fato varia de livro para livro, mas com a leitura na base de tudo. Antes e durante a tradução, procuro ler outros textos do autor, incluindo sua eventual produção ensaística, e obras de autores afins, tanto na língua de partida como na de chegada, além de alguma produção crítica a seu respeito. Também nem sempre é possível cumprir esse programa todo, mas é o ideal.
Como é sua relação com os editores?
Em geral, sempre foi muito boa, porque entendo que é uma relação de parceria, e a maioria dos editores com que tive a sorte de trabalhar também pensa assim. Nas temporadas em que “virei casaca” e trabalhei do outro lado do balcão, procurei manter uma postura coerente com essa convicção. Nas raras ocasiões em que tive algum atrito com editores foi, justamente, porque não houve o devido respeito de parte a parte, quando se apelou para o “quem manda aqui sou eu, ponha-se no seu lugar” – por exemplo, ignorando o direito de o tradutor consultar e questionar as emendas sugeridas a seu texto.
Em sua opinião, quais são as características de um bom tradutor? Elas podem ser ensinadas ou são como um talento pessoal, como uma espécie de dom?
Não acredito que exista um dom inato, nem na tradução, nem em nenhum campo da atividade humana. O que há, sim, são aptidões mais ou menos desenvolvidas ao longo da vida, com raízes nos anos de formação da pessoa, no ambiente em que ela cresce, nos modelos a que tem acesso. No caso da tradução, obviamente, você precisa antes de mais nada gostar de ler e escrever. Gostar mesmo, e isso é algo que se adquire na infância e na adolescência. Paciência e atenção também são fundamentais, além de uma boa disposição para o diálogo, com humildade e, ao mesmo tempo, firmeza. Tudo isso pode ser exercitado em oficinas, grupos de estudo e – por que não? – até em cursos universitários.
Uma vez, você disse que uma das melhores formas de traduzir é em colaboração (em dupla). Quais são os benefícios e os problemas de se traduzir dessa forma? Uma tradução assinada por dois tradutores é algo bem aceito pelas editoras?
Não tenho a menor dúvida de que o trabalho em colaboração é a melhor forma não só de traduzir, mas de se aperfeiçoar. Discutindo o texto, detectam-se problemas e encontram-se soluções que muitas vezes permanecem ocultas na leitura solitária. Tanto assim que, na tradução individual, não raro nos vemos conversando sozinhos, desdobrados num exercício de dialogismo. O grande problema prático da cotradução é que ela toma muito tempo – e de duas pessoas —, mas é remunerada como o trabalho individual. Os bons editores costumam reconhecer que a tradução em dupla tende a ser melhor, mas nem por isso pagam mais por ela. Ainda assim, recomendo a todos, principalmente a quem está começando no ofício, experimentar essa forma de trabalho, que é extremamente enriquecedora – sempre que se possa deixar de lado o cálculo material.
Como você enxerga o mercado de trabalho atual? O que se espera dos profissionais que têm interesse em ingressar na área?
Estamos em meio a uma crise econômica global e nacional, que se soma a uma crise própria da economia do livro e, mais especificamente, da edição literária. A visão do mercado de trabalho numa situação dessas é turbulenta; eu mesmo tenho me perguntado se não é hora de buscar uma alternativa, porque as demandas têm rareado demais. Por outro lado, nos meus mais de trinta anos no ofício, já vivi outras crises muito sérias e ainda tenho esperanças de que esta também seja superada. Tenho a impressão de que, hoje, a maioria dos editores espera que os novos tradutores, antes de mais nada, aceitem trabalhar em troca de baixa remuneração e cumpram os prazos ditados. Mas penso que a entrada no mercado já não deve depender da demanda de editoras convencionais. A autoedição e a edição colaborativa são alternativas bem interessantes, tanto para quem está começando como para os mais experientes.
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